Ex-alunos da UnB contam suas experiências durante a Ditadura Militar

Em 1964, um golpe militar depôs o presidente João Goulart e instaurou uma ditadura que duraria 21 anos. A Universidade de Brasília (UnB), recém-inaugurada em 1968, tornou-se um palco de dor e perseguição, mas também de resistência e luta pela democracia. Agora, quase 40 anos após o fim da ditadura militar, o grande sucesso do filme de drama histórico recém-lançado “Ainda estou aqui” fez com que o cenário nacional e internacional voltasse, mais uma vez, para o que aconteceu entre os anos 1964 e 1985 no Brasil.

A partir desse movimento, o Campus procurou ex-alunos da UnB para contar como era o cotidiano de um jovem universitário naquela época. Apresentaremos três personagens principais: Luís Martins, David Renault e Rosângela Rocha.

 

“UnB era terra sem vida”

Luís Martins é professor aposentado da Faculdade de Comunicação (FAC/UnB) e responsável por fundar o SOS Imprensa.

 

Luís Martins, ex-professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Foto: Lúrya Coelho.

 

Antes de adentrar a faculdade, Luiz pretendia fazer Cinema, porém, não demorou muito até que o curso fosse fechado pelos militares. “Alunos que faziam cursos com muito cunho social, como sociologia, filosofia e serviço social, eram constantemente perseguidos”, disse. Então, em 1972, ingressou em sua nova escolha: Jornalismo. Assim, poderia exercer sua paixão pela leitura, pela escrita e pelo papel social.

Já em seu primeiro dia de aula, deparou-se com um cenário diferente do que imagina. “Quando cheguei, a UnB era terra sem vida. Ninguém falava muito, não tinha diretórios ou centros acadêmicos, as pessoas tinham medo de se reunir… Em sala de aula, certos assuntos não eram falados, principalmente quando se tratava de política. A gente não sabia se o colega simpático ao lado era um agente infiltrado. Eles se disfarçavam de estudantes, professores e servidores, tudo para ficar de olho em pessoas que poderiam estar participando de atividades subversivas, como diziam”, contou.

 

Projeto de arquitetos renomados, como Oscar Niemeyer e João Filgueiras Lima, campus Darcy Ribeiro. Foto: AToM/UnB.

 

Como professor e ex-aluno de um dos momentos mais cruéis do país, Luís defende a educação transparente e livre. “Os militares falavam que os estudantes tinham que estudar, e só. Não era para organizarem manifestações, militâncias ou atividades de fora. Hoje em dia, eu sonho pelo momento em que o estudante realmente terá apenas que estudar, sem se preocupar com seus direitos sendo ameaçados, sem ter que ir pra frente de ministérios ficar batendo panela, sem precisar lutar sempre.”

Por fim, defendeu que sempre há a possibilidade de revivermos momentos passados e a atenção na política é a melhor forma de prevenir-se. “Nós não podemos baixar a guarda, manter-se atento é importantíssimo. Há quem diga que a história não se repete, mas, para mim, a história se repete todos os dias. Conseguimos ver isso na política atual, na política anterior, no Brasil e em outros países. A todo momento pessoas ameaçam a democracia”, destacou. “Mas nós ainda estamos aqui. As pessoas que viveram momentos de terror, que foram alunos, hoje, professores, tantas pessoas que sobreviveram. Ainda estamos aqui para lembrar daquele tempo de horror e lutar para que ninguém passe por aquilo de novo”, finalizou, emocionado.

 

“Domínio do medo”

David Renault, mestre em Comunicação, doutor em História e, também, professor da FAC/UnB. Entrou na UnB no primeiro semestre de 1972, em Comunicação Social – Jornalismo, e formou-se em julho de 1975.

 

David Renault, doutor em Comunicação e  professor da FAC/UnB. Foto: Lúrya Coelho.

 

Com pesar, lembrou que a data em que foi emitido o Ato Institucional n° 5 (AI-5) , em 13 de dezembro de 1968. Com vigência até 1978, foi o mais duro dos decretos, permitindo a cassação de políticos eleitos e a suspensão de direitos individuais. “Hoje, temos uma liberdade que não existia naquela época. A universidade vivia sob o domínio do medo. As pessoas tinham medo de tudo, porque podiam chegar policiais e te prender aqui mesmo, como aconteceu com várias pessoas”, afirmou. 

 

Prisão de Honestino Guimarães,  da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília (FEUB) em 1968 . Foto: Arquivo Central/UnB.

Renault também ressalta que 1973 foi um ano marcado por eventos dramáticos em Brasília, com prisões em massa que muitas vezes não tinham justificativa. “Você podia ser preso simplesmente por pensar, por ter ideias ou por dizer certas coisas”, afirmou. “Dentro das próprias casas, estudantes eram detidos por participarem de algum grupo, por meras suspeitas ou até por denúncias infundadas. Os policiais levavam todos que estivessem na residência”, relatou mencionando um dos episódios de repressão que ocorreram na época.

 

 

“Quando cheguei, não existia mais movimento estudantil na UnB; ele havia sido completamente extinto, assim como a UNE e os diretórios centrais. Após o AI-5, essa era a realidade em todas as universidades federais”, relatou. Acrescentou que somente em 1974 foram eleitos representantes estudantis, graças à tolerância do então chefe do departamento de Comunicação, José Salomão Amorim, embora ainda sob diversas restrições.

David foi um dos indicados e eleitos. Com isso, junto a outros estudantes, ocupou, gradativamente para evitar repressões violentas, o espaço que hoje conhecemos como o Diretório Acadêmico da Faculdade de Comunicação da UnB (DACOM).

Com o passar do tempo, novas organizações estudantis ameaçavam voltar à universidade. Em maio de 1977, estudantes da UnB realizaram um ato público que culminou em greve contra as sanções administrativas e perseguições. Indignados com a manifestação, tropas militares invadiram a UnB em junho do mesmo ano. Estudantes foram presos, professores e funcionários, intimidados.

 

Em 1968, forças policiais e militares cercaram a universidade. Foto: Arquivo Central/UnB.

 

Quando questionado sobre a importância de toda a população, ainda hoje, preocupar-se com a garantia do direitos humanos básicos, como a liberdade, David já tinha convicção:

 

“O indizível sentido do amor”

Rosângela Vieira Rocha, escritora e professora aposentada da FAC/UnB, é graduada em Jornalismo (UnB) e Direito (UFBA). Optou por cursar Comunicação Social com o objetivo de, no futuro, se tornar escritora de ficção, além de seguir o “faro” curioso e observador que havia sido instigado desde a infância por seu pai. “A UnB é o lugar onde me formei e onde decidi formar pessoas. Por isso, ela faz parte da minha vida e tem um significado muito forte para mim”, destacou ao falar sobre o local onde viveu grande parte de sua trajetória.

 

Rosângela Vieira Rocha, escritora e professora aposentada da FAC/UnB. Foto: Lúrya Coelho.

 

Estudou no Centro Integrado de Ensino Médio (CIEM), que na época funcionava como um colégio experimental da UnB, onde os professores eram estudantes de mestrado e doutorado da universidade. “Lá, já vivenciávamos como era a ditadura militar”, destacou. Em seguida, compartilhou uma de suas primeiras experiências durante o regime:

 

 

Presenciou a mais violenta ocupação da UnB pelos militares, em 1968, quando agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) detiveram mais de 500 pessoas, das quais 70 foram presas. “Muitos professores foram demitidos. Eles (militares) tomaram conta do lugar mesmo”, explicou.

Vivendo em espaços onde o silêncio era imposto, os estudantes, professores e servidores encontraram na linguagem não-verbal a maneira mais segura de comunicar-se. Olhares, feições e pequenos gestos se tornaram uma forma de resistência e aviso.

“Algumas disciplinas ficavam a cargo de pessoas de fora, não eram professores concursados. Sabíamos que estávamos num campo minado, que tinham os professores que a gente podia confiar, nesse sentido, e os que não eram daqui, estavam, mas não eram”, contou. Os próprios docentes não falavam sobre aquele pessoal, mas, às vezes, com um olhar a gente entendia. Quando não podemos falar, ainda assim tentamos nos comunicar”, frisou.

 

 

Aos 19 anos, enquanto estagiava na redação do jornal O Estado de S. Paulo, mais conhecido como Estadão, vivenciou uma forma peculiar de linguagem velada: os espaços em branco deixados pela censura no jornal impresso eram preenchidos com conteúdos inesperados. “Lá, usavam poemas de Luís de Camões. Quando alguém via aquilo, já sabia que uma matéria havia sido censurada. Era, também, uma forma muito importante de comunicação”, explicou. Durante esse período, também pôde observar de perto o funcionamento da censura prévia nos jornais, instaurada com a imposição do AI-5. “Os agentes atuavam ostensivamente dentro das redações, sem sequer tentar disfarçar suas ações”, relembrou.

Para Rosângela, que adentrou a universidade logo após se formar no ensino médio, a repressão foi algo contínuo. “A gente sabia o que estava acontecendo, mas eu não imaginava a questão da tortura ainda, porque era bem camuflado. Muito menos sabia que uma pessoa que estava sendo torturada, seria com quem eu iria casar”, contou.

Em 1972, conheceu e começou a namorar com José Antônio Simões Filho, na época, estudante de Física Quântica na UnB. Casaram-se em 1978 e viveram 35 anos juntos, até ele morrer, vítima de pneumonia. Rosângela encontrou na escrita uma forma de conforto e homenagem à memória do marido. Assim, lançou, em 2017, o romance O indizível sentido do amor, “um livro, em resumo, sobre luto e ditadura”, como ela mesma descreve.

“Não é esse o destino das flores que colocamos sobre os túmulos? Elas despetalam, murcham, apodrecem. As folhas também não caem, uma a uma, até que nada reste? Que diferença essencial há entre oferecer uma mensagem escrita e uma flor a um morto?” – Trecho da obra O indizível sentido do amor.

 

Por fim, Rosângela falou sobre a democracia e suas facetas ao longo da história brasileira. “Historicamente, a nossa democracia é muito nova e, também, é imperfeita, até porque eu acho que não existe democracia perfeita. Então, acho que as pessoas devem, sim, ficar de guarda, porque a gente não está livre de outros atos autocráticos. Tivemos recentemente uma tentativa de golpe, é a prova”, destacou. “Além disso, as universidades sempre foram áreas muito vulneráveis e sensíveis. A repressão visa, e não é à toa, porque visa quem está estudando, quem está tentando saber mais das coisas “, completou.

“Há sementes do fascismo por toda parte, o importante é não deixar que virem arbustos, que virem árvores poderosas e, enfim, destruidoras”, concluiu.

A ditadura militar deixou marcas profundas na UnB. Muitos professores foram demitidos e mais de 200 saíram temendo o pior. O campus foi invadido e depredado diversas vezes.

Por fim, a UnB, assim como todas as universidades federais, se firmaram como um centro de resistência e um lugar onde a liberdade de expressão e a diversidade de ideias são valorizadas.

 

Imagem de Vladimir Herzog, jornalista, em 1969. Crédito: Editora Senac/Reprodução.

 

Estes relatos são apenas algumas das muitas histórias de ex-alunos da UnB durante a Ditadura Militar. Histórias de resistência, de luta, de dor e de esperança. Histórias que precisam ser contadas e lembradas, para que nunca mais se repitam.

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