Comunidade acadêmica reclama da falta de acolhimento e punições brandas em casos de assédio
*Os nomes utilizados na reportagem são fictícios para preservar a identidade dos envolvidos.
Na UnB, estudante relata momentos traumáticos em saída com colegas. Foto: Lucas Lopes.
Era final da tarde de uma quinta-feira quando Laura*, estudante de um curso de exatas, Danilo* e Matheus* se locomoveram até um bar na 410 Norte. Entre um copo de bebida e outro, Laura diz ter sido assediada por Danilo, que se aproximou dela como amigo, apesar de exercer o cargo de professor substituto na UnB. “Esse cara era meu amigo. Ele era super gente fina, pagava um monte de cerveja pra mim”.
O episódio ocorreu em meio à Semana Universitária (SemUni) de 2023, ocasião em que um grupo de colegas organizou uma confraternização para celebrar a vinda de um palestrante ilustre. Inicialmente, a ideia era se reunir na UnB e, ao final do dia, celebrar a participação do convidado em um bar próximo à Universidade. No entanto, Laura conta que decidiu ir para o estabelecimento já no começo da tarde. A estudante partiu na companhia de Matheus e de Danilo, que, segundo ela, estava desde cedo dando diversas investidas. “A gente era muito amigo, então não queria ser grossa. Nós mulheres podemos ser vistas como grossa (sic), você não quer ser grossa porque é seu amigo, mas tu tá deixando claro que tu não quer”, disse.
Embora tivesse ingerido bebida alcoólica, Laura relata ter manifestado o seu desconforto com o comportamento do colega, uma vez que ela tinha um namorado na época. No bar, a estudante ainda relembra ter buscado ficar próxima a colegas conhecidos, evitando ficar sozinha na companhia de Danilo.
No final da tarde, ao retornarem à UnB para o encontro com o restante dos colegas de curso que participavam de atividades da SemUni, Laura relata ter tido um lapso de memória. Acompanhada somente de Danilo, os acontecimentos que se seguiram no trajeto do bar para a Universidade permaneceram desconhecidos até o dia seguinte.
Na sexta-feira, ao longo do dia, Laura conta que Danilo enviou mensagens pelo WhatsApp se desculpando pelos supostos beijos que teriam ocorrido entre eles na noite anterior. Confusa por não se lembrar, ela relata que o colega começou a culpabilizá-la pelos atos que teriam acontecido.
Segundo a estudante, a situação vivenciada fizeram-na procurar o diretor do departamento de seu curso de graduação, com propósito de tomar alguma providência em relação ao ocorrido. O diretor acolheu Laura e a auxiliou no processo, encaminhando a denúncia ao Decanato de Assuntos Comunitários (DAC/UnB), instância da UnB responsável pela apuração de casos de assédio envolvendo discentes.
Na sua defesa, Danilo alegou que ambos estariam “flertando um com o outro e que não tinha passado de algum limite em qualquer momento”, e reiterou: “em nenhum momento faltei com respeito ou passei dos limites com ela, todo o flerte e beijos partiram dos dois, que estavam meio alcoolizados”.
Ao final da fase inicial do processo, o DAC arquivou a denúncia pelo entendimento de que o fato teria ocorrido fora das dependências da Universidade, desconsiderando o fato de que o enredo envolvendo Laura e Danilo tivesse sido formado no contexto universitário. Para Laura, após o processo, ver Danilo na Universidade gera crises de ansiedade até os dias de hoje. “Uma vez eu encontrei com ele no meu laboratório e tive crise de ansiedade. Se eu encontro ele, eu passo mal, muito mesmo”, contou.
Denúncias de assédio e demais violências de gênero como a feita por Laura são semelhantes às de outras mulheres da comunidade acadêmica. Matilde*, ex-aluna da UnB, procurou o Campus para relatar um suposto caso de assédio envolvendo um professor titular do Instituto de Ciências Biológicas (IB). Na época, a estudante era de um outro curso que eventualmente tinha disciplinas em comum no departamento. Matilde precisou se encontrar com o docente para remarcar uma prova que tinha perdido em razão de saúde. Antes da reunião, ela já teria sido avisada por outras colegas que o professor teria uma “má fama”.
Em razão dos conselhos, Matilde disse que decidiu ir com uma colega e pensou que ele não teria “coragem de fazer alguma coisa na frente de outra aluna.” Durante a conversa, a ex-aluna alega que o professor teria feito comentários que a deixaram desconfortável.
“A primeira coisa que ele me falou foi ‘eu não lembro de você nas minhas aulas, porque se você viesse nas minhas aulas eu ia me lembrar, você é uma mulher muito bonita’. Aí foi a primeira coisa que me deixou extremamente desconfortável.”
Entrada do Instituto de Ciências Biológicas (IB). Foto: Lucas Lopes.
Quando a estudante decidiu questionar sobre a aplicação da prova, o professor teria dito que o exame seria feito no sábado, dia que o IB ficaria vazio. A outra condição imposta foi que, durante o teste, apenas o professor e a ex-aluna estariam presentes na sala. Em determinado momento, o docente fez um comentário, segundo a estudante, de forma maliciosa sobre o método de avaliação.
“Eu falei: ‘na prova são quantas questões? Será escrita? (…) Ele falou, de forma maliciosa, que seria uma prova oral e que se a minha parte oral fosse muito boa, eu poderia passar de semestre.”
*o áudio foi alterado para preservar a identidade da vítima.
Os casos de assédio não se limitam apenas aos estudantes da UnB. Em 2022, uma professora do departamento de Biologia foi convidada, por telefone, pelo mesmo professor para almoçar juntamente com outra colega do IB. Em dado momento, esta colega se ausentou e o professor pediu que Rafaela* ficasse um pouco mais.
Por achar que se tratava de uma conversa de trabalho, Rafaela ficou. Após a saída da colega, a conversa tomou um outro rumo. O professor, que na época exercia o cargo de diretor do Instituto, teria sugerido um relacionamento com Rafaela, assunto que a deixou desconfortável. Mesmo negando o pedido, segundo ela, o docente a beijou forçadamente.
O sentimento de angústia da professora foi crescendo, e após tomar conhecimento que uma outra professora foi assediada pelo mesmo professor, ela sentiu-se motivada para denunciar o caso. Conforme matéria publicada pela Agência Pública, a comissão formada por três professores para analisar o caso recomendou, no início do processo, o afastamento do professor das suas atividades e, ao final, concluiu que houve assédio, e, então, recomendou a sua demissão.
Após a divulgação do resultado da comissão, foi solicitado à AGU um parecer sobre o processo. Na conclusão, considerou-se que não se tratava de assédio, e sim de uma infração do artigo 116, inciso IX, que se refere ao tratamento respeitoso entre servidores públicos. A penalidade sugerida pela instituição foi de advertência. Segundo a peça processual:
“Sugiro que seja acatado o pedido da defesa de substituição da pena de demissão, pela pena de advertência, tendo em vista a constatação, no caso concreto, apenas da violação do dever disciplinar, previsto no art. 116, inciso XI, respeitado o princípio da proporcionalidade.”
A então reitora, Márcia Abrahão, seguiu o parecer da AGU, mas optou por uma penalidade de suspensão do professor por 15 dias.
Para a professora, o sentimento que prevaleceu ao longo do processo foi de corporativismo entre os membros da comunidade acadêmica, algo que, segundo Rafaela, deve ser superado para que sejam possíveis avanços na melhoria do ambiente de trabalho da Universidade.
“Quando saiu o resultado que ele seria afastado por 15 dias, a sensação que tive é que devia pedir insalubridade. A UnB é um local insalubre para as mulheres trabalharem.”
Confira o relato da professora em entrevista exclusiva ao Campus Multiplataforma
*o vídeo foi distorcido para preservar a identidade da vítima
“Ninguém aguenta mais! Justiça!”
Em reação à ampla divulgação do caso envolvendo as duas professoras titulares do Instituto de Ciências Biológicas (IB) assediadas sexualmente pelo professor Jaime Santana, membros da comunidade acadêmica organizaram a Marcha Contra o Assédio. A mobilização, realizada em 6 de dezembro de 2024, foi uma resposta à penalidade de 15 dias de suspensão aplicada a Santana, tida como branda demais por mulheres da comunidade acadêmica.
Professores, servidores e estudantes marcharam do BSA Sul até a Reitoria. Foto: Luiza Melo.
A marcha teve início por volta das 11h em frente ao Bloco de Salas Sul e seguiu até o seu destino final, o prédio da Reitoria. Ao longo do percurso, manifestantes entoavam frases como “Ninguém aguenta mais! Justiça!” e “Eu já falei, vou repetir: estuprador não se cria aqui”. Naquela manhã, vozes daquelas que não querem sofrer com a possibilidade de serem violentadas dentro da Universidade fizeram-se ouvir em todo o campus Darcy Ribeiro.
A estudante de biologia, Marina Vendramini, expressou a sua preocupação quanto à segurança das mulheres na UnB. “Como é que eu posso fazer ciência sabendo que eu posso ser violentada a qualquer momento?”, questionou.
Na entrada do BSA Sul, manifestantes erguem cartazes em protesto à pena aplicada ao professor acusado de assedio. Foto: Lucas Lopes.
Para Cristiane Ferreira, chefe do Departamento de Botânica (IB) e uma das organizadoras do protesto, além de simbolizar um gesto de solidariedade às vítimas, a marcha também representou um instrumento de pressão com a nova gestão da Universidade no enfrentamento de casos de assédio. “A gente teve a divulgação de umas políticas na gestão passada, mas a gente percebeu que elas não satisfazem, não são efetivas”, e concluiu: “Então a gente precisa mudar isso aqui. A gente quer punição adequada”.
Confira a entrevista concedida ao Campus Multiplataforma pelas organizadoras no dia da marcha
Ao final do protesto, a reitora Rozana Naves e o vice-reitor Márcio Muniz receberam os manifestantes no pátio da Reitoria. Lá, as organizadoras seguiram para uma reunião com Naves e Muniz na Sala de Atos, ocasião na qual foi entregue uma carta com as demandas da mobilização.
Naves acolheu as reivindicações e anunciou que a sua gestão colocará em prática medidas para minar o assédio dentro da Universidade. Entre algumas das ações, a reitora mencionou a implementação de cursos de capacitação para o acolhimento de vítimas voltados para gestores da UnB, e a nomeação de uma comissão fixa para o acompanhamento da Política de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio. “É imprescindível que toda a comunidade se envolva a todo tempo nesse acompanhamento”, declarou.
Na Sala de Atos, a reitora Rozana Naves se reuniu com as organizadoras da manifestação em gesto de acolhimento às reivindicações Foto: Luiza Melo.
De acordo com dados obtidos pelo Campus Multiplataforma, entre 2023 e 2024, a Ouvidoria da UnB recebeu 116 denúncias de assédio moral ou sexual. Do total, 86 denuncias foram protocoladas como assédio moral e 30 como assédio sexual. A média de casos é de quase 5 denúncias por mês. Confira o infográfico a seguir:
Um espaço de resistência
Jardim Louise Ribeiro (JLR), símbolo de combate à violência contra mulheres. Foto: Lucas Lopes.
Uma das iniciativas capitaneadas pela comunidade acadêmica, em especial pelas alunas da PET Bio, frente aos casos de violência de gênero, foi a criação do Jardim Louise Ribeiro. O projeto foi concebido a partir de uma homenagem à Louise Ribeiro, estudante assassinada pelo ex-namorado em 2016.
Segundo a coordenadora do projeto, Isabel Schmidt, a ideia rapidamente tomou proporções maiores, tornando-se um espaço que une a pesquisa científica sobre a restauração do cerrado, com conscientização sobre violência de gênero e acolhimento de mulheres. “Vamos aprender sobre o cerrado, mas vamos também discutir sobre violências contra a mulher. Qualquer tipo de violência, assédios e preconceitos”, explicou.
Primeiro jardim naturalista de cerrado do mundo, o projeto foi arquitetado por paisagistas da Faculdade de Arquitetura (FAU/UnB) em colaboração com estudantes do Instituto de Ciências Biológicas. Foto: Lucas Lopes.
Schmidt diz que espaços de escuta cumprem um papel importante na conscientização acerca do combate às violências. Para a coordenadora, isso se tornou ainda mais evidente dias após o assassinato de Louise, quando ouviu de alguns alunos que todos sabiam que Vinícius, o assassino, era “obcecado pela Louise”. “Eu fiquei apavorada ouvindo essa frase, porque significa que vários sinais tinham sido mostrados de que ele estava obcecado. Isso é um sinal de violência. E se muita gente sabia e ninguém percebeu que aquilo era, de fato, um risco, inclusive a própria Louise, isso é muito assustador. E isso a gente pode prevenir. A gente pode se informar, a gente pode conversar mais sobre isso, divulgar informações para que as pessoas identifiquem pequenos sinais de violência”.
Relembre o caso Louise Ribeiro
A placa em Homenagem à estudante foi descerrada em 2017, em cerimônia que reuniu familiares e amigos. Foto: Lucas Lopes.
Descrita por colegas como uma pessoa doce e sorridente, Louise Maria da Silva Ribeiro ingressou no curso de Biologia da UnB em 2014. Em 2015, a estudante engatou um relacionamento com o seu então colega de curso Vinícius Neres Ribeiro, que durou nove meses. De acordo com relatos de amigos próximos aos dois, o namoro era de conhecimento de todos os colegas.
Em janeiro de 2016, Louise decidiu romper o relacionamento com Vinícius. Ele, inconformado com o término, passou a persegui-la, pedindo a todo tempo para que a estudante reatasse o namoro. Foi então, em 10 de março de 2016, que Vinícius, ameaçando se suicidar, pediu para Louise encontrá-lo no Instituto de Ciências Biológicas para uma conversa.
O local marcado para o encontro foi um laboratório de biologia ao qual Vinícius tinha acesso na época. Ao se aproximar de Louise, Vinícius segurou a estudante à força, a dopou com clorofórmio e a fez ingerir 200ml da substância para assassiná-la. Em seguida, ele despiu o corpo da estudante, seguindo para uma área deserta próxima à L4 norte, onde despejou e ateou fogo no corpo da vítima.
Em depoimento ao Ministério Público, o policial militar Daniel Vilar Silva disse que, apesar de já haver indícios que apontavam para Neres como o principal suspeito do crime, a frieza com a qual o estudante confessou o crime lhe causou perplexidade.
“As amigas ainda contaram que a vítima teria marcado um encontro na noite anterior, por volta de 18h30, com um ex-namorado, no departamento de biologia. Essas mesmas pessoas ainda relataram que o réu há algum tempo tinha mencionado sobre a intenção de suicidar-se; que o depoente logo desconfiou do réu e obteve o telefone dele; que falaram ao telefone e o réu disse que estava assistindo aula naquele momento, na UnB; que o réu saiu da aula e foi ao encontro do depoente; que logo que o depoente e o réu começaram a conversar o réu disse que queria confessar o crime, disse ‘fui eu que matei a Louise’; que de inicio isto causou estranheza no depoente, que até pensou que o réu pudesse estar mentindo”, diz parte do documento.
Após a confissão, Neres conduziu os policiais até o local onde o corpo foi escondido. A condição na qual o cadáver foi encontrado também chamou a atenção dos investigadores: o rosto e as partes íntimas estavam carbonizados. Em 2018, Vinicius foi levado a julgamento, sendo condenado a 22 anos de reclusão.
Na época, a brutalidade do caso de Louise Ribeiro comoveu a população do Distrito Federal, evidenciando para a comunidade acadêmica a urgência de se debater sobre a questão da violência de gênero no ambiente universitário. Em nota publicada no portal da UnB na semana do assassinato da estudante, o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres (NEPeM/UnB) declarou que “qualquer ato de violência (física, sexual, moral, psicológica ou outra) é, de fato, uma forma de negar os direitos humanos fundamentais às mulheres, assim como de nos impor a norma e disciplina patriarcais”.
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Foto: Lucas Lopes.
Nove anos após o crime, o Campus Multiplataforma entrevistou o promotor do caso, Dr. Marcello Medeiros. Em sua fala, ele deu mais detalhes dos acontecimentos e explicou como funciona a atuação do Ministério Público em casos de violência doméstica e feminicídio. O promotor também frisou a importância das denúncias para o combate ao feminicídio e outras formas de violência. Assista a entrevista na íntegra:
Fluxo de denúncias para o combate aos assédios
Em julho de 2023, a Câmara de Direitos Humanos da UnB aprovou a Política de Prevenção e Combate ao Assédio Moral, Sexual, Discriminações e Outras Violências. De acordo com a Coordenadora das Mulheres, pasta vinculada à Secretaria dos Direitos Humanos (SDH/UnB), Rafaella Eloy de Novaes, a partir dessa Política, foi possível a elaboração do fluxo de denúncias de assédio.
Segundo a coordenadora, o novo fluxo tem como objetivo facilitar a realização de denúncias, dado que, agora, os canais foram ampliados. “O fluxo não coloca apenas uma possibilidade de local de início da queixa, então tem várias possibilidades de locais, pode começar na unidade acadêmica, pode começar na SDH. Então isso facilita a denúncia da vítima”, explicou.
Novaes frisou que as atuação da Secretaria também inclui o acolhimento às vítimas, além da promoção de ações educativas dentro da Universidade voltadas à prevenção e ao combate ao assédio. “As ações da secretaria não devem estar restritas só ao recebimento de denúncias. Temos um papel educativo que é importante de ser feito”, afirmou.
Canais de denúncias
*A Universidade de Brasília tem um fluxograma disponível para denúncias de casos de assédio. Caso você seja vítima de assédio, denuncie no portal da Ouvidoria https://falabr.cgu.gov.br/web/home?modoOuvidoria=1
*O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos também possui um canal de denúncia. O Ligue 180 é um serviço de utilidade pública essencial para o enfrentamento à violência contra a mulher.
*No Distrito Federal, qualquer pessoa pode fazer uma denúncia de violência doméstica indo presencialmente no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.